sexta-feira, março 29, 2013

Disparos, de Juliana Reis *1/2


Dá para dizer que o diretor norte-americano Robert Altman ditou os parâmetros dos filmes mosaicos – aquelas narrativas em que há uma multiplicidade de personagens e subtramas (que geralmente se interligam, de forma tênue ou não), sem que haja um protagonista definido. Obras clássicas como “Nashville” (1975), “Cerimônia de casamento” (1978) e “Short cuts” (1993) são referenciais na filmografia de Altman dentro dessa linha cinematografia e até se tornaram bastante influentes. Alguns aprenderam direitinho a lição e até fizeram algumas obras interessantes (caso de Paul Thomas Anderson no extraordinário “Magnólia”). Outros, entretanto, limitaram-se a macaquear de forma equivocada e sem inspiração os preceitos de Altman. Exemplo máximo desse último caso é “Crash” (2004) de Paul Haggis. E parece que é justamente “Crash” o modelo inspirador de “Disparos” (2011). No roteiro do filme da cineasta Juliana Reis até se insinua uma espécie de protagonista na figura do fotógrafo Henrique (Gustavo Machado), mas ao longo da narrativa a trama vai se dissipando em ramificações um tanto disparatadas e que se resolvem de forma gratuita e forçada. Isso faz com que a tensão promissora da premissa de Henrique ser sufocado pelo submundo kafkaniano de marginais e policiais corruptos acabe se esvaziando. O filme insiste na tecla de pequenos burgueses angustiados e sufocados pelo cotidiano de solidão e violência (nesse sentido, evocando novamente o politicamente correto “Crash”), o que dilui ainda mais a sua densidade dramática

quinta-feira, março 28, 2013

Vai que dá certo, de Mauricio Farias **1/2


Um dos males dos quais assola o cinema brasileiro contemporâneo é a necessidade de formatá-lo de acordo com aquilo que pode ser “vendável”. Um seriado televisivo faz sucesso? Ora, vamos lançá-lo como filme!! Isso sem contar a absorção de maneirismos típicos da TV para o cinema. É claro que há boas chances de tal tática render bem nas bilheterias, mas também é inegável que gera uma série de obras descartáveis e medíocres. E se agora a onda é a comédia stand up, por que não fazer um filme utilizando os preceitos de tal linguagem? O resultado é esse “Vai que dá certo” (2012), que utiliza por base o roteiro de alguns cômicos do gênero stand up que estão em evidência. O curioso é que apesar de um roteiro equivocado pelo uso exagerado de “espertezas”, a produção até consegue ser envolvente, graças a direção mais equilibrada de Mauricio Farias. Sua condução de narrativa consegue, por vezes, gerar tensão, ainda que a trama seja constantemente interrompida por diálogos engraçadinhos com citações de cultura pop (sim, tem gente que ainda acha isso muito inteligente...) e intervenções performáticas que mais caberiam num palco do que num filme policial (ainda que com elementos cômicos). E se as atuações de Bruno Mazzeo, Gregório Duvivier, Fábio Porchat e Felipe Abib enchem o saco pelo tom histriônico e de densidade zero, por outro lado chega a impressionar o desempenho de Lúcio Mauro Filho, que consegue fazer a sua persona cômica habitual “sumir” na sua composição dramática.

quarta-feira, março 27, 2013

Os croods, de Chris Sanders e Kirk DeMicco ***1/2


Nas animações contemporâneas, é inegável que a Pixar é a grande referência em termos artísticos e tecnológicos, o estúdio em que a grande maioria se mira. É dali que vem boa parte das inovações e das tendências. Dito isso, “Os Croods” (2013), da Dreamworks, não estabelece novos parâmetros para o gênero, como era de se esperar. A produção se limita a seguir uma cartilha, mas faz isso com notável competência e nisso acaba se sobressaindo, mostrando-se até acima da média. O roteiro é muito bem engendrado, combinando as tradicionais doses de humor, aventura e sentimentalismo com um subtexto de forte teor questionador, oferecendo uma visão crítica sobre comodismo e a defesa arraigada de tradições obsoletas. Já em termos gráficos, o filme impressiona tanto pela beleza do traço quanto pelo nível de realismo – por vezes se tem a impressão de se estar vendo uma obra de live action – trazendo um efeito encantador peculiar para o seu visual. De se destacar ainda uma narrativa muito envolvente, repleta de sequências de ação estonteantes na sua dinâmica, aliadas a um aguçado senso de tensão que oferece tanto para as situações como para os personagens uma dimensão dramática cativante.

terça-feira, março 26, 2013

Os miseráveis, de Tom Hooper **1/2


O romance “Os miseráveis” de Vitor Hugo é uma das grandes obras literárias a tratar sobre o humanismo. O livro trafega de forma constante num tênue limite, em que seu caráter fortemente dramático e emocional parece sempre à beira de descambar para o sentimentalismo excessivo, coisa que a pena afiada do escritor não permite. Essa versão mais recente (2012) do romance é baseada num musical da Broadway que adaptou o romance em questão. Devido a tal origem, é evidente que há o perigo que predomine o exagero kitsch – e é o que acaba acontecendo, com o diretor Tom Hooper transformando a trágica trajetória do protagonista Jean Valjean (Hugh Jackman) num exagerado espetáculo embregalhado, repleto de grandiloquentes e melosas canções de gosto duvidoso e uma encenação destituída de qualquer senso de sutileza. Além disso, Hooper por vezes se equivoca ao apelar para uma concepção visual digna de vídeo clips da MTV. “Os miseráveis”, entretanto, está longe de ser esse desastre completo que se anda comentando entre público e crítica. A reconstituição estilizada da Paris do século XIX revela certo encanto visual, e por vezes o filme até consegue ser divertido ao apresentar uma narrativa de eventuais tons delirantes. Mesmo o elenco apresenta algumas atuações cativantes, principalmente no caso de Jackman, Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen. No final das contas, fica valendo como curiosidade, apesar da frustração de não conseguir captar com alguma fidelidade a essência do brilhante original de Vitor Hugo (ao contrário, por exemplo, da extraordinária versão cinematográfica de “Anna Karenina” concebida por Joe Wright, também lançada em 2012).

segunda-feira, março 25, 2013

A fuga, de Stefan Ruzowizky ***


A narrativa de “A fuga” (2012) se estabelece a partir de uma estrutura bem definida: é uma obra do gênero ação que se desenrola a partir de uma trama cujo foco são relações mal resolvidas em três núcleos familiares. Assim, todo o sangue e brutalidade que saltam das telas funcionam, em níveis simbólicos, como uma espécie de expiação das culpas que exalam dessas relações familiares disfuncionais. Nesse sentido, quando envereda para o drama, o filme se mostra um tanto frágil enquanto narrativa, insistindo em um psicologismo de araque. A obra se mostra se mostra efetivamente convincente quando envereda para a ação propriamente dita. As seqüências na neve, tanto nas de lutas corporais quanto em tiroteios e perseguições, trazem um registro visual poderoso, com a direção de fotografia conseguindo captar a beleza bruta de uma natureza árida e inóspita (nesse aspecto, os efeitos metafóricos são mais eficientes, em que as paisagens geladas funcionam como reflexo da própria condição existencial embrutecida dos personagens), além da encenação do diretor alemão Stefan Ruzowizky, aliada a uma edição de talhe clássico, ser bastante precisa e clara no detalhamento dos embates entre seus personagens. Em tais momentos, a dimensão dramática do protagonista Addison (Eric Bana) cresce de forma admirável. Os diálogos entre ele e a menina que salva do padrasto violento, por exemplo, evocam uma espécie de conto de fadas estranho e perturbador.

sexta-feira, março 22, 2013

Killer Joe - Matador de aluguel, de William Friedkin ****


Assim como em “Bug – Possuídos” (2006), o diretor William Friedkin usa como base de trama em “Killer Joe – Matador de aluguel” (2012) uma peça teatral. Mas isso não quer dizer que temos puro teatro filmado. Ainda mais que Friedkin é um dos grandes mestres vivos da manipulação da linguagem cinematográfica. Nesse seu filme mais recente, o cineasta não esquece as raízes de dramaturgia de seu roteiro. É visível em várias passagens do filme uma atmosfera que não se limita ao naturalismo, em uma narrativa cujo tom exagerado por vezes beira o delirante. Assim, por mais que se evoque uma linha temática que descenda da sordidez típica do policial noir (e, por conseqüência, lembre algumas produções dos Irmãos Coen), “Killer Joe” possui uma estética muito própria. Os personagens se arrastam em cena como se estivessem em um drama grego trágico clássico, onde cada diálogo e cada gesto carregam uma simbologia obscura. O efeito sensorial é desconcertante, até porque Friedkin não se priva de abusar de uma violência grotesca e até cômica. A sua noção de utilização de recintos fechados é igualmente criativa e perturbadora – a composição cênica, os enquadramentos e a iluminação compõem um todo imagético de forte teor estilizado, remetendo a uma metáfora visual de que os personagens progressivamente rumam para seus infernos pessoais. Nesse sentido, a noção do desenrolar dramático da narrativa é de condução exemplar, chegando a uma conclusão climática de pura catarse negativista. A impressão final aparente que se pode ter é de uma espécie de cruzamento bastardo entre o onirismo enviesado de David Lynch com o virtuosismo típicos de Brian De Palma e dos já mencionados Coen. No final das contas, entretanto, é apenas Friedkin se voltando cada vez mais para padrões autorais muito particulares, mas essenciais para o cinema contemporâneo.

quinta-feira, março 21, 2013

Super Nada, de Rubens Rewald **


Sem querer parecer maniqueísta, mas atualmente pode ser percebida uma diferenciação estético-ideológica entre as escolas cinematográficas nacionais de acordo com o Estado de que elas provem. Nesse sentido, Pernambuco, por exemplo, é marcado por produções que enveredam por uma visão temática bastante questionadora, por vezes até anárquica, e marcada por ousadias formais. Em contraponto, São Paulo tem apresentado um cinema mais asséptico e blasé, adotando um discurso niilista e irônico de formato um tanto engessado. “Super Nada” (2012) é bem emblemático desse jeito paulista contemporâneo de fazer cinema. A gente pode perceber as boas idéias, a necessidade de captar o zeitgeist desse milênio, mas a forma com que as coisas se desenvolvem na tela é de um academicismo e previsibilidade irritantes – tudo parece seguir um manual típico de faculdades de cinema. Para retratar a atmosfera de mediocridade e letargia de seu protagonista, um ator na pindaíba financeira e moral, o diretor Rubens Rewald opta por uma abordagem estética árida e sem atrativos, que pode até ser coerente com a trama do filme, mas que por outro lado em nenhum momento se mostra capaz de causar algum arrebatamento para o espectador.

quarta-feira, março 20, 2013

Anna Karenina, de Joe Wright ****


Seria muito reducionista tentar analisar essa mais recente versão cinematográfica de “Anna Karenina” (2012) pelo ângulo de uma simples comparação com o original literário de Léon Tolstoi. Até porque não haveria como condensar todos os detalhes de um romance de 800 páginas em um filme de pouco mais de duas horas. Na realidade, a pretensão do diretor Joe Wright é muito mais ousada do que uma simples transcrição visual daquilo que está no livro. Assim como já havia feito no extraordinário “Orgulho e preconceito” (2005), o que o cineasta elaborou foi uma tradução sensorial da história concebida por Tolstoi, condensando no roteiro aquilo que há de essencial. Para isso, recorre a um aparato estético fortemente barroco e até intrincado, mas que se mostra em perfeita sintonia com os ideais do escritor russo. A fusão que se dá entre cinema e teatro não é gratuita, evidenciando até uma verve irônica perversa – afinal, o teatro era um dos principais pontos da vida social da sociedade russa no século XIX. O filme sugere que as relações humanas naquele meio eram tão cerimoniosas e hipócritas que na realidade acabavam se configurando como encenação da própria vida. Para ilustrar tais preceitos de estilização da narrativa, Wright transforma “Anna Karenina” em um show de virtuosismo, repleto de planos sequências estonteantes, uso de sons ambientais que evocam um insólito tom de musical, fotografia de iluminação que beira o irreal e edição cujos cortes e fusões de imagem enfatizam ainda mais o caráter algo delirante da narrativa. O aparente exagero de truques formais não faz com que “Anna Karenina” caia no hermetismo estéril. Pelo contrário – propicia ao espectador que entre no imaginário tanto de uma época quanto da mente de um escritor tão brilhante quanto Tolstoi. Quem dera que a maioria das adaptações para o cinema de um livro fosse assim...

terça-feira, março 19, 2013

A busca, de Luciano Moura **1/2


O cinema brasileiro parece ainda estar em busca de um novo “Central do Brasil” (1998). Esse pensamento é que me veio à mente quanto assisti à “A busca” (2013). Toda a estrutura narrativa do filme de Luciano Moura parece uma espécie de tributo espiritual à obra mais conhecida de Walter Salles. A progressão é basicamente a mesma: protagonista é obrigado a sair da cidade e viajar pelo interior do Brasil, e nesse processo acaba fazendo uma viagem de autodescoberta, tornando-se um ser humano melhor. Também como naquela produção de Salles, a trajetória do personagem principal serve como uma metáfora para o atual contexto social/político/existencial do Brasil, pregando uma necessidade de revalorização de certos princípios. Há aquela velha dicotomia – é necessário se desligar do ambiente corrompido e confuso das grandes metrópoles e retomar os sentimentos puros e simples inerentes ao homem do campo. Como o próprio Salles gostar de alardear, é a busca do Brasil profundo... A formatação e o discurso de “A busca” podem ser um tanto manjados, refletindo a necessidade de uma parcela de nossos cineastas e roteiristas em buscar sair de uma certa zona de conforto em termos criativos. Estão aí filmes extraordinários como “A febre do rato” (2011) e “O som ao redor” (2012) mostrando que há diferentes caminhos a serem percorridos. É inegável, entretanto, que a obra de Luciano Moura revele uma capacidade de se mostrar envolvente como espetáculo em alguns momentos, ainda que repise nos seus clichês dramáticos. Na sua meio hora inicial, há uma atmosfera que até por vezes beira o tenebroso na sua carga sombria e negativista. Com o desenrolar da trama, aos poucos isso se dissipa, evoluindo para um incômodo tom edificante, chegando-se à conclusão que evoca mais do mesmo.

segunda-feira, março 18, 2013

Barbara, de Christian Petzold ***


O rigor estético típico do cinema alemão presente em “Barbara” (2012) se estende de forma notável para a própria temática do filme. Formalmente, a produção dirigida por Christian Petzold adota uma postura clássica e elegante – não propicia grandes arrebatamentos visuais, mas a sua coerência narrativa é precisa ao caracterizar de forma sóbria o ambiente sufocante que envolve a protagonista do título. A trilha sonora, em boa parte das cenas, é inexistente, valorizando-se os silêncios como fator de tensão. Nesse sentido, o roteiro da obra se mostra em sintonia com a abordagem de Petzold, enfatizando diálogos que mantém um bem arquitetado equilíbrio dramático entre o sugerido e o ostensivo. Toda essa formatação arquitetada pelo cineasta abarca uma visão ética e social surpreendente na sua ausência de maniqueísmos óbvios. Por mais que sejam realçados os instrumentos de opressão de um Estado totalitário como a Alemanha Oriental da época da cortina de ferro, “Barbara” está longe de ser um manifesto pelo “capitalismo democrático”. Com sutileza, são inseridos elementos de dúvida ao longo da trajetória da personagem principal, fazendo com que seus desejos fiquem mais difusos em relação ao que realmente quer para si (fugir ou não para o lado ocidental). Assim, as soluções não se apresentam fáceis, deixando o filme ainda mais instigante.

sexta-feira, março 15, 2013

A parte dos anjos, de Ken Loach ***1/2



Assistindo a “A parte dos anjos” (2012), do cineasta britânico Ken Loach, a conexão que mais me veio à mente foi com um dos primeiros longas de ficção do próprio Loach, “Kes” (1969). Em ambos os filmes, há a presença de um protagonista desajustado perante os padrões comportamentais da sociedade, mas que dentro de si esconde um dom insuspeito. Na visão de Loach, a falha maior não está na incapacidade de seus personagens em se adaptarem às comunidades em que se encontram, mas sim na falta de sensibilidade das pessoas em poder reconhecer as potencialidades desses indivíduos. A insistência do diretor na abordagem de temáticas semelhantes não se configura como mera repetição, mas sim com uma admirável coerência artística de Loach, além de revelar a perenidade de seu cinema.

“A parte dos anjos” também revela muito da extraordinária capacidade narrativa de Loach. Nas mãos de um diretor qualquer, a trama do filme poderia cair facilmente no campo do sentimentalismo ostensivo ou de artificiais tons edificantes. Já pelo olhar de “Loach”, o roteiro da produção ganha um tratamento formal sóbrio, mas também encantador. O registro visual é objetivo, por vezes beirando o documental, mas esse tratamento estético acentua de forma considerável a dramaticidade das situações, assim como a empatia com os personagens. Impressiona também como numa trama de forte caráter social, a expor a falta de perspectivas para a juventude nas periferias de Glasgow, Loach consegue inserir com naturalidade uma dinâmica de gênero de “thriller”, sem que a obra perca o seu tom humanista. Isso é recorrente na cinematografia do cineasta: a capacidade de ser reflexivo (ou até mesmo panfletário) sobre os problemas sociais contemporâneos, mas com afiadas noção e dinâmica de espetáculo cinematográfico.

quinta-feira, março 14, 2013

O quarteto, de Dustin Hoffman **1/2


Dentro do gênero comédia dramática com velhinhos fofinhos, “O quarteto” (2012) consegue mostrar algumas surpresas, ainda que preso a algumas fórmulas narrativas. Mesmo não apresentando grandes voos criativos, Dustin Hoffman até que se revela um diretor com alguma sensibilidade, principalmente no que diz respeito à direção do seu elenco. O fato da trama se passar num lar de idosos direcionados a músicos aposentados permite que o filme apresente algumas cenas memoráveis. Há sequências expressivas na utilização da música, que conseguem dar uma dimensão inebriante para as cenas. Os dilemas da velhice são expostos, por vezes, com algumas cruezas inquietantes. Nesse sentido, há uma bela sacada do roteiro ao fazer com que no asilo existam algumas belas e jovens mulheres que lá trabalham que fazem um contraste um tanto perturbador com a velhice dos protagonistas, realçando tanto uma serena melancolia como um sentimento de impotência. Ou seja, no final das contas, o cineasta Dustin Hoffman pode não ter a mesma grandeza artística que tem como ator, mas com o “O quarteto” até desperta a curiosidade para um próximo trabalho.

quarta-feira, março 13, 2013

Amor é tudo o que você precisa, de Susanne Bier *1/2


Os primeiros filmes que vi da cineasta dinamarquesa Susanne Bier, “Corações livres” (2002) e “Brothers” (2004), eram obras bastante vigorosas, que revelavam influências claras da estética crua e das temáticas impactantes do movimento Dogma 95, que teve entre seus principais criadores o irrequieto Lars Von Trier. Com o tempo, entretanto, a diretora foi perdendo o seu gume cortante de sua abordagem, o que acabou resultando em obras cada vez mais genéricas e óbvias. “Amor é tudo o que você precisa” (2011) representa a triste coroação dessa despersonalização do cinema de Bier. A diretora recicla idéias e concepções já utilizadas em algumas de suas produções anteriores e formaliza tudo como uma comédia romântica. O resultado é desajeitado e por vezes constrangedor – aquele registro visual cru e de viés naturalista entra em descompasso com a narrativa formulaica. É claro que Bier dá uma disfarçada na trama, colocando uns detalhes um pouco mais insólitos aqui e ali (câncer, homossexualismo), mas isso não tira os deméritos de um roteiro marcado por incongruências, apelações e diálogos que beiram o infantil. E ainda tem o “mérito” de extrair uma das piores atuações da vida de Pierce Brosnan.

terça-feira, março 12, 2013

Oz, mágico e poderoso, de Sam Raimi ***


A trajetória artística do cineasta norte-americano Sam Raimi é bastante emblemática no sentido de representar as contradições da indústria cinematográfica contemporânea nos Estados Unidos. No seu início de carreira, foi um dos grandes nomes do cinema independente de seu país, em que as condições modestas de produção contrastavam com o alto nível de criatividade estética. A sua trilogia “Evil Dead” é o ápice dessa fase. Quando ingressou no ritmo dos grandes estúdios e teve à sua disposição uma infra-estrutura maior, Raimi conseguiu em alguns momentos preservar a sua assinatura autoral, resultando em algumas obras antológicas (“Darkman”, “Um plano simples”, “Homem-aranha 2” e “Arrasta-me para o inferno”). Em algumas outras ocasiões, entretanto, a pressão dos produtores para entregar um filme de acordo com os padrões médios do mercado falou mais alto. “Oz, mágico e poderoso” (2013) se encaixa nesse último caso. Não que o filme seja completamente descaracterizado de traços estilísticos típicos de Raimi. Em algumas seqüências, dá para ver a boa mão do diretor para o cinema fantástico – o pique alucinado e cartunesco de determinadas seqüências de ação (em que há uma interessante conjugação entre a encenação live action com animação) e a personalíssima caracterização visual de personagens e cenários fazem valer o ingresso. Além disso, Raimi consegue extrair algumas interpretações fortemente carismáticas de seu elenco, principalmente no caso de James Franco e Michelle Williams. O que impede “Oz” de vôos criativos mais altos é uma narrativa por vezes demasiadamente convencional, que faz com que a tensão dramática seja de baixa densidade. No final das contas, é uma produção curiosa, mas que deixa a permanente sensação de que poderia ter sido muito melhor.

segunda-feira, março 11, 2013

Hitchcock, de Sacha Gervasi ***1/2



É claro que os aspectos históricos da trama biográfica de “Hitchcock” (2012) são saborosos, configurando um forte atrativo para cinéfilos e neófitos. A grande força do filme de Sacha Gervasi, entretanto, está na sua construção estética. A trama da obra se desenvolve a partir de um processo tortuoso e fascinante – o caso real dos múltiplos assassinatos cometidos pelo psicopata Ed Gein se transformou no livro ficcional chamado “Psicose” que foi adaptado por Hitchcock no clássico do suspense de 1960 e, por fim, todas essas ramificações se unem no roteiro da produção de Gervasi. Essa atribulada trajetória não é recriada por um viés necessariamente naturalista ou exatamente fieis aos fatos. O que se apresenta na tela é muito mais os aspectos lendários que rondam o nosso imaginário cinematográfico sobre Hitchcock e “Psicose”, sem que, contudo, a produção deixe de ser muito esclarecedora sobre os mecanismos de realização e dos interesses que envolviam (e ainda envolvem) a indústria de cinema em Hollywood.

No seu formalismo, há uma grande sacada estética por parte de Gervasi em “Hitchcock” – apesar de biográfico, ele formata o filme como se fosse uma obra de suspense, na melhor tradição de seu protagonista. As viradas do roteiro, as ambientações tensas, a trilha sonora quase paródica a emular temas de Bernard Herrmann, habitual colaborador de Hitchcock – tudo funciona como uma espécie de caricatura irônica do próprio estilo do cineasta. Essa viagem pelas concepções artísticas do diretor, por vezes, chega às raias do perturbador, vide as seqüências oníricas (ou mesmo delirantes) em que Hitchcock interage com Ed Gein tanto como pesquisa para “Psicose” como para aconselhamentos pessoais.... É por essa abordagem insólita que “Hitchcock” se impõe como umas das obras recentes mais contundentes a discutir o fazer cinematográfico, além de valorizar de forma perspicaz o gênio estilístico de um dos maiores mestres do cinema.

sexta-feira, março 08, 2013

A hora mais escura, de Kathyn Bigelow ****



Assim como no filme anterior da diretora Kathyn Bigelow, “Guerra ao terror” (2008), não dá para dizer exatamente que “A hora mais escura” (2012) seja uma obra ufanista ou não perante os conflitos dos Estados Unidos com o Oriente Médio. O filme até tem um estudo histórico preciso e rigoroso ao mostrar a trajetória das atividades de inteligência e militar dos EUA do início da década passada até hoje visando a caçada a Osama Bin Laden. A ênfase temática de Bigelow, entretanto, desloca-se com sutileza para um aspecto mais intimista – é como se a cineasta estivesse mais interessada nos efeitos que a caçada obsessiva ao terrorista provocou nos envolvidos, principalmente na protagonista, a agente Maya (Jessica Chastain). Quando as polêmicas sequências de tortura surgem, de encenação seca e brutal, o roteiro sugere a contradição em que a busca da defesa dos valores democráticos acaba utilizando meios que levam à desumanização de seus praticantes. Por esse ângulo, como falar que o filme pode justificar a tortura?

A riqueza artística de “A hora mais escura” não se restringe a sua sobriedade temática. Bigelow volta a demonstrar a sua excelente mão para o cinema de ação. Ainda que boa parte da trama se desenvolva em gabinetes e escritórios, com longas cenas de diálogos, a dinâmica da narrativa é eletrizante, tanto na tensão quanto na violência gráfica. O rigor objetivo da encenação revela influências de um estilo documental de filmar, mas a diretora tem a sabedoria de conciliar com nuances dramáticas e emocionais impactantes, o que não significa uma concessão ao sentimentalismo. Pelo contrário. As escolhas estéticas de Bigelow vão se revelando cada vez mais coerentes, sendo que a brilhante meia-hora final do filme, com a operação de invasão ao esconderijo de Bin Laden e sua execução, é uma aula de concisão cinematográfica.

quinta-feira, março 07, 2013

Caverna dos sonhos esquecidos, de Werner Herzog ***1/2


Para os desavisados, o documentário “Caverna dos sonhos esquecidos” (2010), nas suas primeiras cenas, pode fazer pressupor uma obra de caráter institucional e educativo a expor as descobertas científicas relativas a uma caverna no interior da França onde se encontram as mais antigas pinturas rupestres. À medida que a narrativa se desenvolve, entretanto, as particulares concepções artísticas do cineasta Werner Herzog afloram de forma contundente. Os registros audiovisuais obtidos no local são pioneiros – Hergoz e sua equipe foram os primeiros a terem autorização para filmar a caverna. Por outro lado, esse acesso foi limitado em termos temporais, com Herzog e companheiros tendo apenas algumas horas diárias para fazer toda a sua filmagem. Para o alemão, tais dificuldades são normais quando ele envereda para o cinema verdade, vide outras produções antológicas que dirigiu no gênero. Herzog transforma as dificuldades em elemento dramático, por vezes se torna ele mesmo personagem, afastando assim o filme do simples registro objetivo e jornalístico. Até os depoimentos de cientistas e estudiosos ganham uma conotação de transcendência filosófica e existencial, extravasando os limites didáticos. A ambientação criada por Herzog a partir de sua abordagem temática/formal ganha um caráter entre o solene e o reflexivo – tentar entender o que se passou há milhares de anos naquela caverna é também procurar a compreensão do próprio comportamento humano no decorrer da história. E para referendar ainda mais a etiqueta “imperdível” para “Caverna dos sonhos esquecidos”, pode-se caracterizá-lo como uma das mais expressivas utilizações da tecnologia 3D no cinema.

terça-feira, março 05, 2013

Colegas, de Marcelo Galvão **


O fato de usar como protagonistas um trio de portadores de Síndrome de Down não parece ter influenciado de forma positiva o diretor Marcelo Galvão na realização de “Colegas” (2012). Não que os referidos atores sejam o ponto fraco do filme. Pelo contrário: as atuações dramáticas deles são muito boas, oferecendo à obra alguns de seus melhores momentos. O fato é que o filme sofre de auto-indulgência. A direção de Galvão é frouxa, padecendo da falta de um maior apuro formal e de um roteiro mais consistente. É como se o cineasta tivesse juntado uma série de seqüências cômicas, que oscilam entre o bobo e o efetivamente engraçado, e algumas citações cinematográficas disparatadas e amarrasse tudo numa narrativa frágil e trôpega. Não há a mínima tensão no filme, fruto de uma encenação que está mais para um rascunho metido a engraçadinho do que para cenas bem acabadas formalmente. Talvez a intenção de Galvão fosse buscar uma singeleza naif nas suas concepções artísticas, mas o resultado é apenas a evocação de um amadorismo por vezes constrangedor e de anemia criativa, isso quando não descamba para um sentimentalismo barato pela narração despropositada na voz over de Lima Duarte (que tira qualquer espaço para sutileza temática do filme).

segunda-feira, março 04, 2013

Meu amigo Cláudia, de Dácio Pinheiro ***


Nas primeiras seqüências de “Meu amigo Cláudia” (2009), pode-se ter a impressão de uma obra de alcance muito específico. Afinal, a narrativa fica concentrada na biografia do transexual Cláudia Wonder, focando mais os aspectos intimistas da sua figura protagonista. Com o desenvolver do documentário, entretanto, o filme vai ganhando uma conotação mais abrangente. Afinal, Cláudia participou de alguns filmes da ativa indústria de filmes eróticos nos anos 70 e 80, além de ter sido vocalista de bandas roqueiras que militavam no underground paulista da década de 80. Assim, o diretor Dácio Pinheiro consegue oferecer um interessante panorama cultural e comportamental da época, mostrando muitos dos dilemas e contradições de uma geração que recém saía da sombra tenebrosa da ditadura e se via diante de possibilidades criativas que antes lhes eram vedadas, caindo assim num período de alta efervescência artística e também de muitos excessos em todos os sentidos. Uma das mais interessantes contraposições do filme é mostrar que esse período de intensa atividade cultural e comportamental revelava uma concepção de arte que fugia dos compromissos com um certo padrão de bom gosto e de assepsia que hoje em dia ditam muito dos caminhos artísticos. Nesse sentido, Pinheiro parece fazer uma declaração de fé de sua admiração por aqueles padrões artísticos oitentistas ao utilizar uma abordagem estética mais suja, em que por vezes a imagem evoca as imperfeições de uma gravação em VHS, além da edição buscar um estilo de colagem de imagens de arquivo e depoimentos recentes.

sexta-feira, março 01, 2013

De coração aberto, de Marion Laine ***1/2


Em uma obra cuja temática gira em torno de questões como gravidez, alcoolismo e relacionamento amoroso instável, há sempre o perigo de que uma perspectiva de sentimentalismo e de lugares comuns acabe afetando a narrativa. Pois em “De coração aberto” (2012) a cineasta francesa Marion Lane se afasta dessas armadilhas a partir de uma abordagem bastante incisiva. Sua encenação prima pelo visceral – na relação entre o casal de protagonistas Mila (Juliette Bichoce) e Javier (Edgar Ramirez) também há espaço para a ternura quanto para uma crueza incômoda. A diretora procura contrastes sutis e desconcertantes ao concentrar a ação no ambiente asséptico de um hospital de transplante e no apartamento do casal, local esse último que se deteriora de forma simultânea à própria relação de Mila e Javier que entra em violenta crise emocional. O requinte e o rigor na filmagem de operações de transplantes, explicitando sangues e órgãos, parece aludir à forte carnalidade e à intensidade na forma com que os personagens principais se relacionam. O formalismo de Laine apresenta aparentemente uma preferência pelo naturalismo, mas nos momentos finais do filme é inserida na narrativa uma estética simbolista, entre o onírico e o delirante, o que aumenta ainda mais o impacto sensorial da obra.