segunda-feira, novembro 30, 2009

In Case You Didn`t Feel Like Showing Up - Ministry


O Ministry foi artifice de uma das mais influentes concepções sonoras da década de 90. Posteriormente imitado, abusado e banalizado por outras bandas, o coquetel musical explosivo de Alain Jourgensen e Paul Barker trazia doses cavalares de metal e punk amalgamados por uma produção recheada de barulhos e intervenções eletrônicas típicos do rock industrial das décadas passadas. A música que surgia desse embate de influências diversas era inovadora e assustadora: baterias eletrônicas aceleradas e seqüenciadores se chocavam violentamente com guitarras de peso até então inimaginável e vocais urrados. A cada disco o Ministry aperfeiçoava tais colagens enlouquecidas, o que acabou lhe rendendo pelo menos três álbuns de estúdio brilhantes e imperdíveis: The Land Of Rape and Honey (1988), The Mind Is A Terrible Thing To Taste (1989) e Psalm 69 (1992).

In Case You Didn’t Feel Like Showing Up (1990), disco ao vivo que trazia registros da turnê de The Mind Is A Terrible Thing To Taste, mostrou como o Ministry conseguia traduzir nos shows a música repleta de detalhes de produções das gravações de estúdio. Se em tais performances “live” a banda não trazia todos as nuances de samplers e ruídos insólitos característicos de seus discos, isso se compensava pela nova dimensão que as canções ganhavam ao vivo. Temas como Burning Inside e Thieves perdem o seu andamento marcial original e acabam soando mais orgânicas, ganhando uma intensidade agressiva impressionante. As cyberpunks The Missing e Stigmata são tomadas por uma dinâmica notavelmente hardcore. Mas o grande momento do disco é mesmo So What, tema de estrutura musical fascinante que nasce a partir de um ritmo lento e ameaçador, desenvolve-se em um crescendo instigante e desemboca numa explosão épica de guitarras, contando com uma interpretação adequadamente sinistra do vocalista Chris Connelly, fiel colaborador de Jourgensen e Barker. Aliás, So What também é um dos grandes destaques da versão em vídeo de In Case You Didn’t Feel Like Showing Up. Confesso que não tenho muita paciência de assistir a shows pela televisão, mas vale a pena conferir Connelly cantando/vociferando So What pendurado numa grade que circunda a banda como se a mesma estivesse enjaulada.

Star Trek, de J.J. Abrams ***1/2


Nunca acompanhei com regularidade a série televisiva clássica de “Jornada das Estrelas” e nem os seus respectivos derivados mais modernos. Não vi também todos os filmes da franquia cinematográfica. Faço todas essas afirmações para deixar claro que não sou um “trekker” xiita que dá bola para questões como fidelidade à mitologia clássica da série que os fanáticos tanto preservam. E é justamente por isso que gostei tanto de “Star Trek” (2009), a revisão para os dias atuais das origens de Kirk, Spock e companhia. Não há necessidade de conhecimento prévio de vários detalhes de cronologia para poder entender os desdobramentos da trama. Além disso, há um roteiro consistente que faz com que tanto iniciados como neófitos acompanhem com interesse o que se passa na tela. O diretor J.J. Abrams mostra também um admirável domínio das técnicas de cinema de aventura, quesito em que tinha deixado a desejar em “Missão Impossível 3” (2006). No saldo final, “Star Trek” é disparado uma das melhores produções “pipocas” de 2009.

Submarino Amarelo, de George Dunning e Dick Emmery ***1/2


É claro que “Submarino Amarelo” (1968), sob um olhar contemporâneo, apresenta alguns excessos. A trama padece de um certo “bicho-grilismo” em demasia, a psicodelia das imagens soam um pouco banalizadas em algumas seqüências. Mesmo assim, assistir a essa animação continua sendo uma experiência inquietante. A conjunção da música dos Beatles com um visual delirante rende cenas que oscilam entre o encantador e o assustador. A narrativa difusa alude a uma viagem lisérgica que não necessariamente conduz somente a momentos agradáveis. É como se a estranha versão Disney para “Alice no País da Maravilhas” fosse jogada num barril de LSD. E de certa forma, “Submarino Amarelo” também parece antecipar o conceito do atual Rock Band dos Beatles na questão de procurar uma tradução para os olhos do ideário sonoro dos 4 rapazes de Liverpool.

Depois da Escola, de Antônio Campos ***


É claro que uma certa sensação de “deva vu” percorre os fotogramas de “Depois da Escola” (2008). A trama que enfoca as conseqüências da violenta morte de duas irmãs na rotina de uma escola parecer evocar constantemente o extraordinário “Elefante” (2003) de Gus Van Sant, não só pela temática, mas também pela abordagem narrativa que ambos os filmes adotam – um registro distanciado e desapaixonado que revela um olhar clínico e investigativo sobre as hipocrisias e os valores pequenos burgueses da sociedade, representada, nas obras, pelo microcosmo da escola. Mesmo com tais semelhanças, “Depois da Escola” é uma produção que tem nuances dramáticas peculiares, revelando um perturbador senso de humor ao confrontar sensações contraditórias de perplexidade e indiferença do protagonista Robert (Ezra Miller) e das pessoas que o cercam.

Anjos e Demônios, de Ron Howard *


Não vou mentir: não li “Anjos e Demônios” e nem “O Código da Vinci”. Partindo do pressuposto, entretanto, que a versão cinematográfica do primeiro seja uma adaptação fiel, só posso chegar a conclusão que o mesmo seja uma obra literária de valor artístico questionável. A trama de “Anjos e Demônios” é uma simplória colcha de retalhos que junta toscamente referências históricas, teorias conspiratórias, aventura e suspense na mesma narrativa. E, francamente, tentar achar um viés polêmico e contestatório nessa trama que beira o trash é forçar a barra demais. Fotografia e montagem são apenas corretas, enquanto o experiente diretor Ron Howard parece ter trabalhado por procuração. Dentro desse gênero de “professor universitário culto e aventureiro que salva o mundo”, é melhor ficar com qualquer filme da série Indiana Jones. Pelo menos, é bem melhor dirigido e as seqüências de ação são infinitamente mais empolgantes.

Sinédoque, Nova Iorque, de Charlie Kaufman ****


O que geralmente se enfatiza na obra de Charlie Kaufman é o elemento irreal que sempre paira nos seus roteiros. Apesar disso ser inegável, deve-se considerar também que o que realmente o diferencia é a forma como a própria realidade se insere dentro desse aspecto fantástico. Nas tramas de Kaufman, essa realidade irrompe em formas de emoções brutas e desconfortáveis. Isso fica evidente em sentimentos de desilusão amorosa e insatisfação com a mediocridade do cotidiano tão inerentes aos personagens de “Quero Ser John Malkovich” (1999) , “Adaptação” (2002), “Confissões de Uma Mente Perigosa” (2002) e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004), todas produções roteirizadas por Kaufman. Em “Sinédoque, Nova Iorque” (2008), a obra de estréia de Kaufman como diretor, todas essas emoções cruas afloram em uma escala maior de intensidade, assim como o seu gosto pelos delírios surreais se mostra ainda mais desafiante. Cabe ressaltar que a junção de dois aspectos tão díspares (real e fantástico) na mesma narrativa nunca é gratuita para Kaufman. A obsessão do diretor teatral Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman) em traduzir o seu caos pessoal para uma gigantesca peça de teatro que nunca será encenada para o público pode ser esquisita demais (e realmente é), mas é a metáfora visual perfeita a traduzir a angústia existencial do personagem. Não há a preocupação com uma delimitação precisa entre o plano real e aquele que o extrapola: à medida que a narrativa avança, as fronteiras entre esses planos ficam progressivamente difusas, chegando ao ponto em que se fundem, fazendo com que os próprios personagens não saibam se são eles mesmos ou apenas os atores que o interpretam, assim como se os fatos que vivenciam pertencem às suas vidas ou apenas fazem parte da encenação. Cotard perde o controle de vez da sua obra e, por conseqüência, da sua própria existência. Kaufman traduz essa confusão sensorial em imagens arrebatadoras, que trazem no mesmo fotograma intimismo e senso épico impressionantes. Seu debut atrás das câmeras, por fim, revela-se irregular, traumático e inesquecível.

NOCTURNE - Siouxsie and The Banshees


Para mim, escrever sobre Nocturne (1983), álbum ao vivo de Siouxsie e seus Banshees gravado no tradicional Royal Albert Hall, acaba implicando em inevitáveis acessos a reminiscências juvenis. Lembro que na minha adolescência por várias vezes escutei na Ipanema FM a faixa de abertura desse disco: uma introdução bombástica com a Sagração da Primavera de Igor Stravinsky que dramaticamente é interrompida pela potente e soturna linha de baixo de Steven Severin e um marcante riff minimalista de guitarra que anunciam a poderosa versão de Israel.



Nocturne marcava uma espécie de fecho do período do auge criativo da banda, representado pela trinca espetacular Kaleidoscope (1980), Juju (1981) e A Kiss In The Dreamhouse (1982). Em tais discos, a banda substituía o punk rock barulhento de The Scream (1978) e Join Hands (1979) por uma inusitada combinação de rock, sonoridades psicodélicas e influências de reggae. Os ritmos quebrados e tribais da bateria de Budgie, os tons lúgubres do baixo de Severin e os timbres peculiares e levemente dissonantes do guitarrista John McGeoch geravam arranjos compactos e dinâmicos, ao mesmo tempo que realçavam as belas melodias sombrias das canções e o canto gélido de Siouxsie. Essa musicalidade fortemente particular da banda acabou se tornando uma das mais características e influentes do período pós-punk.



Em Nocturne, a sutileza e os detalhismos dos arranjos são colocados em segundo plano em prol de um rock mais básico e urgente. Assim, canções como Paradise Place e Cascade ganham uma intensidade impressionante, quase selvagem, enquanto temas clássicos da banda como Happy House e Spellbound apresentam uma atmosfera ainda mais densa que nas versões de estúdio. Apesar de nesse show já não contarem mais com McGeoch, os Banshees encontraram um substituto mais que adequado em Robert Smith (sim, ele mesmo, o eterno líder do Cure). A guitarra do rapaz não apenas reproduz o estilo de McGeoch como também acrescenta um toque mais ríspido, remetendo à própria banda originária de Smith.

segunda-feira, novembro 23, 2009

Rock`n`Roll Animal - Lou Reed


Quem nunca ouviu Rock n Roll Animal (1974), registro de um concerto de Lou Reed realizado em 21 de dezembro de 1973, pode ler a relação de música na contra-capa do disco e pensar “legal, Lou Reed tocando uns clássicos do Velvet Underground!”. Bem, o negócio não é bem por aí... O que o cara fez nessa apresentação foi uma transformação radical nos arranjos de tais canções, em versões que representam uma antítese que beira a heresia dos cânones malditos de sua antiga banda.

Talvez a melhor maneira para tentar entender o que é Rock n Roll Animal é pensar numa inusitada equação histórica. Pense inicialmente que a primeira metade da década de 70, pelo menos na Inglaterra, foi marcada pelo auge do Glam Rock de David Bowie, Roxy Music e T.Rex, movimento musical esse que teve o Velvet Underground como uma das suas influências primordiais. Logo depois, deve-se lembrar que foi o citado Bowie quem ajudou Lou Reed a se reerguer de um certo ostracismo em que se encontrava após o fim do Velvet, sendo que Bowie chegou a produzir, inclusive, o fundamental Transformer (1973). Ora, observando todo esse contexto, nem é tão complicado concluir que Rock n Roll Animal é algo como Lou Reed homenageando/sacaneando o tal do Glam Rock (não à toa, o cara está todo maquiado na capa do disco), tocando algumas pérolas do repertório do Velvet sob uma ótica espalhafatosa, exagerada e pesada, típica daquela época. A resposta final dessas conjecturas e equações tortas é algo como se o Velvet Underground houvesse renascido como uma banda de hard rock, com direito inclusive a solos virtuosos de guitarra!! Convenhamos, entretanto, que raras vezes o hard rock foi tão sujo, ambíguo e inspirado quanto em Rock n Roll Animal. Lou Reed contava na época com uma banda fabulosa, encabeçada por uma dupla de guitarristas fenomenais: Dick Wagner e Steve Hunter. O brilhante arranjo de guitarras se entrecruzando de forma sinuosa em Sweet Jane e o alucinado duelo de riffs e solos na versão acelerada de White Light/White Heat são momentos maravilhosamente desconcertantes e que fazem do disco não apenas um dos melhores álbuns ao vivo do rock, mas também um marco no quesito “grandes discos guitarrísticos”.

As Testemunhas, de André Techiné ***1/2


A trama de “As Testemunhas” (2007) pode parecer banal na sua superfície ao retratar uma série de desencontros amorosos entre seus personagens. O que se desenrola na realidade, entretanto, é muito mais inquietante. O drama dos personagens tem como pano de fundo o surgimento dos primeiros casos de AIDS na França. O diretor André Techiné explora o assunto evitando o sentimentalismo fácil. O que fica mais evidente são sensações como a perplexidade e a fragilidade emocional perante o desconhecido entre pessoas culturalmente privilegiadas ou simplesmente plenas de vitalidade. Techiné faz também um contraponto perturbador entre o tom som sombrio da história com o gosto por tomadas que focalizam belas paisagens naturais iluminadas de forma deslumbrante. Outro ponto alto de “As Testemunhas” é um elenco recheado de interpretações elegantes e precisas, principalmente por parte de Michel Blanc e de Emmanuelle Béart.

Katyn, de Andrzej Wadja ****


Em “Katyn” (2007), o veterano diretor polonês Andrzej Wadja está distante da linguagem mais experimental de alguns de seus filmes das décadas de 50 e 60. Esse maior convencionalismo formal, entretanto, não significa uma menor contundência. Usando de uma moldura de melodrama clássico e de uma sombria direção de fotografia, Wadja oferece um retrato sufocante de um dos episódios mais nefastos do 2ª Guerra Mundial, o massacre de oficiais poloneses praticado pela União Soviética na floresta de Katyn. “Katyn” não traz soluções milagrosas ou atenuantes edificantes dentro de sua sóbria narrativa. A estrutura da trama oferece um teor investigativo, em que passado e presente se entrecruzam na busca da verdade dos fatos. A realidade aos poucos vai sendo dissecada e o tom de desesperança torna o filme cada vez mais tenso até se chegar à seqüência final dos assassinatos dos oficiais, em que Wadja se utiliza de um estilo quase documental na frieza objetiva com que filma as execuções.

E por falar em filmes sobre 2ª Guerra, não há como não fazer a comparação: se Quentin Tarantino abusou da ironia e do irreal para construir a sua visão pessoal sobre o conflito em questão e acabou obtendo um resultado fabuloso em “Bastardos Inglórios”, Wadja utilizou um caminho totalmente inverso dentro da mesma temática que resultou em um filme igualmente extraordinário.

Ele Não Está Tão a Fim de Você, de Ken Kwapis **1/2


A pretensão de “Ele Não Está Tão a Fim de Você” (2009) é alta. O filme propõe fazer uma radiografia das relações amorosas nesse novo milênio por uma perspectiva menos idealizada. Em alguns momentos, até consegue fazer prevalecer essa visão mais realista dos jogos de sedução e das dificuldades sentimentais inerentes aos relacionamentos entre homens e mulheres, o que coloca a produção em um nível acima da média das comédias românticas recentes (se bem que para isso não precisaria de muito esforço). Por melhores que sejam as suas intenções, entretanto, o filme por várias vezes cai em chavões simplistas, sendo que as soluções finais para os conflitos expostos no roteiro são óbvias e poucos convincentes. Fica-se com a impressão de que o diretor Ken Kwapis ficou receoso em fazer uma conclusão mais contundente que ofendesse o público cativo do gênero, optando por resoluções tão escapistas e improváveis quanto outras obras francamente melosas.

Fome, de Steve McQueen ****


Inicialmente, cabe ressaltar que o diretor de “Fome” (2008) não é o falecido astro de clássicos como “A Mesa do Diabo” ou “Fugindo do Inferno”. Mesmo assim, tendo em vista a virulência desse seu filme, demonstra ao menos ter culhões parecidos ao de seu homônimo. “Fome” é uma verdadeira porrada cinematográfica, em qualquer sentido que se possa pensar. Focando as relações turbulentas entre ativistas do IRA, presos numa instituição inglesa, e autoridades britânicas, McQueen conduz uma narrativa sufocante, em que a radicalização do conflito vai se intensificando a um ponto cada vez mais dramático. Das surras brutais desferidas pelos guardas nos prisioneiros até a fatal greve de fome que vitimiza o protagonista Bobby Sands (Michael Fassbender), não há atenuantes para a permanente tensão que paira em “Fome”. O alívio só vem para o expectador brevemente nos últimos momentos que antecedem a morte de Sands, quando idílicas imagens juvenis invadem a sua mente. Vale destacar ainda o inesquecível plano seqüência estático em que Sands justifica para um padre os motivos que validam o seu auto-sacrifício, expostos através de uma lógica perturbadora.

Passagem Para Índia, de David Lean ****


Adjetivos como “grandioso” ou “acadêmico” nunca foram ofensivos para a filmografia de David Lean. Esse cineasta não usava tais atributos para mascarar limitações dramáticas. Pelo contrário – por mais épica que fosse a sua produção, Lean não perdia o controle na rigorosa caracterização dramática de seus personagens. Em “Passagem Para Índia” (1984), sua derradeira obra, o diretor apresenta um impressionante trabalho de reconstituição de época. A Índia colonialista de Lean é exuberante em suas cores, cidades exóticas e cenários misteriosos. Essa exuberância visual encontra o seu complemento perfeito na trama do filme, que envolve uma fascinada “turista” inglesa (Judy Davis) que se deixa envolver pela inebriante cultura indiana, acabando por se envolver em um mal explicado caso de abuso sexual supostamente praticado por um nativo. Esse conflito traz implícito de forma extraordinária uma gama de questões como a brutal colonização inglesa e a intolerância racial inerente aos aparentemente tão civilizados cavalheiros ingleses. Lean conduz essa epopéia sobre o preconceito com elegância e sobriedade no filmar impressionantes.

The Bootleg Series, Vol. 4: The "The Royal Albert Hall" Concert - Bob Dylan & The Band


Em um dos meus primeiros textos que escrevi para o site Insólita Máquina, aquele em que eu falava sobre os “bootlegs” do Neil Young, eu já havia feito alguns breves comentários sobre esse álbum duplo ao vivo. Na realidade, muito já se escreveu sobre o mesmo e toda a importância histórica e mítica que tal apresentação de Dylan acompanhado do The Band (na época, ainda chamados de The Hawks) carrega. O “problema” é que cada vez que a gente ouve essa maravilha parece que um novo detalhe surge, uma nova perspectiva se abre. Apesar de ser muito lembrado pelo célebre grito de “Judas” dirigido ao bardo norte-americano por um medíocre qualquer da platéia, o que faz The Bootleg Series, Vol. 4: ‘The Royal Albert Hall’ Concert (1998) ser simplesmente o melhor registro oficial de uma apresentação de Bob Dylan é a música cheia de paixão e fúria que troveja das caixas de som.

O show em questão foi emblemático tanto pela música quanto pelas circunstâncias históricas nas quais Dylan estava envolvido na época. O primeiro disco traz a metade inicial da apresentação, sendo um retrato perfeito do artista que a maioria dos fãs puristas queria ver no palco: o trovador solitário, armado de voz, violão e gaita, desfiando uma série de temas acústicos e clássicos. E Dylan mostra por quê era fácil amar essa sua encarnação de menestrel folk, oferecendo uma interpretação intensa e plena de lirismo para canções que já naquela época estavam intrinsecamente ligadas ao imaginário musical do planeta (jóias como It’s All Over Now, Baby Blue, Just Like a Woman e Mr. Tambourine Man).

Os desavisados que ouvirem o segundo disco poderão levar um susto e se questionarem como é que um dos ditos melhores discos ao vivo de todos os tempos pode ter na sua gravação o registro de tantas vaias vindas da platéia. A explicação não é tão difícil de se entender: na segunda parte da apresentação, sai aquele Dylan acústico e símbolo dos movimentos contestatórios sociais e entra um artista ainda mais inquietante e não disposto a oferecer respostas prontas e claras para o público, mais interessado em dar vazão à sua efervescência criativa do que corresponder às expectativas ideológicas e estéticas ortodoxas de seus (ex?)fãs. Para ele, o conceito de tradição já não faz tanto sentido assim e enfiar a eletricidade no folk e fundi-lo com o rock é o caminho mais que natural. É claro que a resposta da maioria de seus admiradores não poderia ser das melhores... Nessa nova arquitetura sonora, Dylan encontrou na The Band os parceiros mais que adequados. Afinal, “A Banda” era composta por caras que juntavam sem cerimônia várias vertentes do tradicionalismo musical norte-americano (country, blues, jazz, folk) dentro da linguagem rock da época, em que instrumentos acústicos conviviam em singular harmonia com guitarras, órgão e bateria faiscantes. O show em questão é a prova incontestável dessa parceria genial entre Dylan e o The Band. Músicas essenciais do cancioneiro “dylaniano” como I Don’t Believe You e Ballad of a Thin Man são transfiguradas divinamente pelo órgão celestial de Garth Hudson e pela sensibilidade melódica da guitarra de Robbie Robertson. O piano de Richard Manuel pontua magicamente o repertório com intervenções preciosas recheadas de influências de blues e jazz. O detalhismo sônico do The Band encontra no baixista Rick Danko uma espécie de fio condutor que une elementos tão diversos em um conjunto em perfeita sintonia. Diante de uma musicalidade tão cheia de nuances e ao mesmo tempo executada com sensacional crueza, temos um Dylan oferecendo algumas das interpretações mais rascantes da sua carreira. A conclusão de tal performance, e por conseqüência do disco em questão, só poderia desembocar numa versão raivosa, pesada e quase arrastada de Like A Rolling Stone. Ouvir esse verdadeiro pandemônio elétrico entremeado por vaias e apupos intolerantes é uma experiência de proporções quase surreais. Talvez nunca a surrada expressão “jogar pérolas aos porcos” tenha encontrado uma situação tão propícia para ser utilizada...

sábado, novembro 14, 2009

O Milagre de Santa Ana, de Spike Lee ***1/2


Depois de assistir a filmes extraordinário como “A Última Noite” (2002) e “O Grande Plano” (2006), obras que mostram um Spike Lee no topo do domínio das lides cinematográficas, eu estava com muitas expectativas para “O Milagre de Santa Ana” (2008). Afinal, Lee prometia um filme definitivo na abordagem da participação dos negros na 2ª Guerra Mundial. Dessa forma, era de se esperar algo no nível, no mínimo, de “A Conquista da Honra” (2006), o sensacional épico naturalista e amargo de Clint Eastwood sobre o mencionado conflito. Assistindo à produção em questão, entretanto, veio a decepção. O problema é um excesso de momentos melodramáticos que jogam o filme para o convencionalismo padrão que geralmente ronda o gênero, principalmente nas seqüências finais, quando a trama volta para o presente. Isso não quer dizer, entretanto, que “O Milagre de Santa Ana” seja uma obra dispensável. Muito longe disso. Lee conduz com rigor e empolgação as cenas de ação, além de alternar com sensibilidade realismo e instantes quase oníricos durante a narrativa.

Mesmo não estando entre o melhor da filmografia de Spike Lee, “O Milagre de Santa” confirma o seu nome como um dos talentos diferenciados no atual panorama cinematográfico.

Budapeste, de Walter Carvalho ***


Não sei qual era a intenção original do livro do Chico Buarque que deu origem a respectiva adaptação cinematográfica “Budapeste” (2009), até mesmo porque não li a menciona obra literária. No filme em si, há momentos que a narrativa fica confusa pela oscilação entre o real e a fantasia que permeia a trajetória do protagonista José Costa (Leonardo Medeiros, em atuação transtornada na dose certa). Em outras seqüências, entretanto, é justamente essa falta de delimitação que torna “Budapeste” um filme estranhamente sedutor. O fluxo da trama corre solto, com detalhes aleatórios sendo jogados pelo roteiro até se formar um conjunto que deixa o espectador mais desconcertado do que no início da produção. É claro que Walter Carvalho não tem o mesmo requinte de um David Lynch para construir uma viagem sensorial tão bem acabada, mas mesmo assim consegue um resultado final inquietante e marcado por uma direção de fotografia lapidada com esmero.

Um Ato de Liberdade, de Edward Zwick ***


“Um Ato de Liberdade” (2008) não traz muitas diferenças em termos temáticos em relação a outras produções que mostram judeus tentando sobreviver aos horrores da 2ª Guerra Mundial. Apesar desse convencionalismo, entretanto, vale a pena assisti-lo, principalmente pelo talento do cineasta de Edward Zwick para dirigir seqüências épicas de ação, como ele já havia mostrado em filmes como “O Último Samurai” (2003) e “Diamantes de Sangues” (2006). Zwick dosa com precisão tensão e violência nas cenas de guerra, impressionando, inclusive, pela crueza da brutalidade em alguns desses momentos. Isso, porém, não é marcado pela gratuidade, pois na realidade reflete o endurecimento dos sentimentos e do caráter dos irmãos Tuvia (Daniel Craig) e Zus (Liv Schereiber) em meio a barbárie que os rodeia. Aliás, a dupla de protagonistas é um dos trunfos de “Um Ato de Liberdade” – Craig e Schereiber conseguem conciliar truculência e densidade dramática com maestria nos seus respectivos papéis.

Deserto Feliz, de Paulo Caldas ***


Se em “Baile Perfumado” (1997) predominava uma narrativa acelerada e que beirava quase a um tom místico, em “Deserto Feliz” (2008), obra mais recente de Paulo Caldas, o registro visual é marcando por um tom mais contemplativo. Narrando a história de Jéssica (Nash Laila), uma menina que sai de sua casa encravada no sertão de Pernambuco, onde era constantemente violentada pelo padrasto, e vai para Recife se prostituir, Caldas valoriza movimentos de câmera que se utilizam de planos seqüência e uma montagem de poucos cortes. O sertão é retratado num registro melancólico, mas que valoriza a estranha beleza dos cenários áridos, ao mesmo tempo que o ambiente de “trabalho” das meretrizes na capital baiana merece uma ambientação ambígua: se por um lado se tem a degradação da vida diária da protagonista, por outro prisma o cineasta parece querer resgatar um perverso olhar deslumbrado do gringo que faz turismo sexual e que vai para Recife em busca de um mundo encantado de sexo, drogas e forró. Dentro dessa visão que procura fugir de fáceis maniqueísmos, os dilemas na vida de Jéssica não são marcados apenas pelas influências externas, mas também pelas próprias escolhas pessoais da menina. Assim, a possibilidade dela casar com um “príncipe encantado” alemão não se configura simplesmente como um final feliz.

domingo, novembro 08, 2009

SuperOutro, de Edgar Navarro ****


A opção por um estilo anárquico por parte do cineasta Edgar Navarro em “SuperOutro” não significa necessariamente que essa produção de 1989 seja apenas um mero exercício estético vazio. Por mais que não se utilize de uma narrativa linear e convencional, o filme é hipnotizante, tanto pelo seu ácido humor como pela sua criativa concepção formal. Em sua insólita jornada existencial, o mendigo/herói protagonista parece condensar na sua figura tanto uma dimensão trágica como a expressão irônica e bagaceira do indivíduo brasileiro. No personagem, há a síntese das contradições do nosso país, assim como a manifestação ultrajante contra os padrões de bom gosto, não apenas cinematográficos, mas também culturais e sociais.

Bete Balanço, de Lael Rodrigues *


Dizer que “Bete Balanço” (1984) envelheceu mal com o passar do tempo é um eufemismo. O filme já era desastroso no ano do seu lançamento. O diretor Lael Rodrigues parece ter ficado indeciso entre fazer um filme ou um vídeo-clip, e no final das contas não fez nenhum dos dois. Quase tudo padece de precariedade: narrativa frouxa, fotografia sem inspiração, coreografias amadoras, atuações pouco convincentes. Apesar de toda essa ruindade, entretanto, não há como não cair naquele velho lugar comum: o interesse numa visão sobre essa produção reside no quesito de curiosidade histórica. Afinal, “Bete Balanço” reflete, ainda que de forma esmaecida, a juventude típica carioca dos anos 80: ingênua, hedonista, sedenta de algo novo. Isso sem contar que documenta um momento importante do rock brasileiro, ao trazer como coadjuvante a banda Barão Vermelho em sua formação clássica e no auge da sua força criativa com Cazuza.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Eu Te Amo, Cara, de John Hamburg ***1/2


Assim como “O Virgem de 40 Anos” (2005) e “Superbad” (2007), “Eu Te Amo, Cara” (2009) é mais uma bem humorada produção norte-americana a celebrar a amizade masculina. A trama se desenvolve como se fosse uma comédia romântica de encontros e desencontros, mas ao invés de se ter um casal de enamorados, tem-se uma dupla de amigos que está se conhecendo. Por mais que possa haver uma leitura de um subtexto gay no roteiro, a verdade é que o que o filme enfoca mesmo são os laços, digamos, fraternais entre os dois protagonistas. As situações focadas oscilam entre a ironia do quotidiano e seqüências francamente escatológicas e grosseiras, mas sempre com uma visão carinhosa permeando todos os momentos da obra. O roteiro traz ainda doses certeiras de bem sacadas referências pop (sempre que a adoração ao Rush entra em cena, por exemplo, o resultado é hilariante). O “par” de atores principais também é um grande trunfo do filme: Paul Rudd consegue encarnar um típico cara bonzinho de forma incrivelmente cômica, enquanto Jason Segel parece ter nascido para o papel de bonachão boa praça, sendo que a química entre os dois é a força motriz de “Eu Te Amo, Cara”.

Confesso que as minhas expectativas para “Eu Te Amo, Cara” não eram das mais altas, pois o diretor John Hamburg é o mesmo do insosso “Quero Ficar Com Polly?” (2004). Mas o saldo final dessa sua produção recente é tão positivo que faz despertar a curiosidade pelo seu próximo filme.

Terra, de Alastair Fothergill e Mark Linfield ***


Não sei se esse documentário fará com que alguém realmente mude suas concepções e modos de agir em prol da fauna terrestre. Não há como negar, entretanto, que “Terra” (2007) é um belo espetáculo cinematográfico. Focando a sua narrativa basicamente em alguns grupos de animais, a dinâmica do filme é muito mais de uma aventura do que de uma produção de caráter didático. E nesse quesito de ação, cumpre seus objetivos de forma louvável. A luta pela sobrevivência dos animais que protagonizam a obra é mostrada de forma detalhista: cenários inóspitos, climas em disfunções cruéis e inclemência dos demais animais “coadjuvantes”. Esse conjunto de fatores diversos gera um quadro angustiante – nesse sentido, o ápice da tensão cabe aos desesperados e infrutíferos esforços do urso polar que batalha por alimentação para si e a sua família. Seus agonizantes momentos finais de vida têm uma dimensão épica e melancólica impressionante

As Sete Vampiras, de Ivan Cardoso ***1/2


Poucos filmes nacionais podem se orgulhar de ter uma alma tão brasileira quanto “As Sete Vampiras” (1989). Ivan Cardoso combina na mesma obra elementos inicialmente díspares que se revelam insolitamente afins: chanchada, quadrinhos, horror, ficção científica dos anos 50, canastrice dramática, erotismo. E o que poderia acabar se tornando apenas uma mera colcha de retalhos de influências simpáticas acaba se revelando uma produção de singular coesão criativa. O roteiro do veterano Luchetti abarca com habilidade todas essas referências e oferece uma trama divertida como poucas sem que a mesma se afogue em excessivas homenagens e citações. Além disso, Cardoso mostra mão firme na condução de sua narrativa sem perder aquele espírito tipicamente bagaceiro tão característico de sua carreira como cineasta.

domingo, novembro 01, 2009

A Janela, de Carlos Sorin ***1/2


A seqüência inicial da produção argentina “A Janela” (2008) é de uma beleza formal e emocional devastadora: no formato de um antigo e desgastado filme do início do século XX, é mostrada a mais remota lembrança infantil de Antonio, um escritor idoso e já bem debilitado. A partir desse momento, o diretor Carlos Sorin começa a narrar o último dia da vida de Antonio em sua fazenda em algum posto afastado do interior da Argentina. Usando de um estilo que se aprofunda em longos planos e silêncios, o cineasta põe em cena discretamente alguns elementos dramáticos: discussões sobre os problemas de saúde de Antonio, um nervoso devedor do protagonista, a volta do filho que partiu há muitos anos, a nora estressada com chamadas para o seu celular que nunca chegam e até uma desastrada fuga do velho pelos campos. A impressão que se tem, entretanto, é que todas esses conflitos vão se dissolvendo para Antônio até restar apenas uma prosaica questão: quem era aquela moça que cuidou dele no aludido episódio de sua infância? É como se no fim da vida tudo aquilo que compôs a existência de um indivíduo (família, trabalho, dinheiro, as realizações pessoais, orgulho) fosse removido, e daí se indagasse: o que restou? Na morte, o velho novamente se torna um pequeno menino e seu único interesse é receber um carinho feminino. Essa constatação é exposta de forma serena e desconcertante, e é na naturalidade desse desnudamento da alma que reside grande parte da força de “A Janela”.